Por Daniel Gonçalves
Estou gostando dessa história de resenhar os filmes que assisto, claro que isso não se aplica em todos, mas reconheço uma motivação interessante para escrever os textos que levo ao ar neste espaço. A bola da vez é o filme Pearl, de nacionalidade dividida entre Estados Unidos e Canadá, lançado em 2022. Fiquei impressionado com a qualidade fotográfica da produção, tanto nos ambientes externos, quanto nos locais fechados, isso conta pontos valiosos no resultado final (para mim nota máxima nesse quesito). Conta também com uma trilha sonora bastante envolvente, que aumenta a tensão instalada naquela atmosfera fervente. Entre uma pausa e outra, péssimo hábito que tenho, descobri que esse filme pertence a um universo expandido, com mais duas produções, desenvolvidas para formar uma trilogia. Pearl é o início da história, portanto, vamos lá!
Tudo começa em 1918, ano marcado por grandes acontecimentos no mundo, onde temos os momentos finais da 1ª Guerra Mundial assolando a Europa, e a Gripe Espanhola, pandemia que ceifou milhões de vidas. Nesse cenário, uma família vive do jeito que é possível, no interior do Texas, nos Estados Unidos. Pearl (Mia Goth), sua mãe Ruth (Tandi Wright) e seu pai, interpretado pelo ator Matthew Sunderland são os personagens com mais tempo de tela e que estruturam boa parte da trama. O pai, acometido por uma doença que o paralisou por completo, vive numa cadeira de rodas em estado praticamente vegetativo. A mãe, uma religiosa fervorosa, cuida dos afazeres domésticos do rancho e vive mergulhada em uma amargura depressiva prestes a explodir em sentimentos confusos e desproporcionais. Já Pearl, uma jovem que deseja se tornar dançarina de teatro e fazer muito sucesso pelo mundo.
Pelo tamanho da casa de campo que vivem, aparentemente eles não são uma família pobre, mas a doença do pai, somada com as limitações impostas pela guerra, reduziram drasticamente a condição financeira deles. Tanto que os animais são escassos, possuem somente uma vaca leiteira, um carneiro e alguns gansos que ficam perambulando pelo local. Os poucos centavos economizados pela mãe são para comprar migalhas na cidade e remédios para o pai, o principal da lista, sulfato de morfina, para aliviar a dor física. Nesse ambiente, contaminado por uma tensão permanente, um sonho reprimido da Pearl, que utiliza a necessidade de ir à cidade para satisfazer pequenos caprichos, como por exemplo, ir ao cinema. Nele são rodados as primeiras películas, em um recinto esvaziado, muito por conta da pandemia e guerra acontecendo ao mesmo tempo (tem até o clichê de pessoas tossindo, apenas para reforçar a sensação de medo por contaminação).
Antes que eu me esqueça, Pearl é casada com um jovem idealista (e rico), Howard (Alistair Sewell), que foi voluntário a defender seu país na guerra. Ela demonstra um sentimento misto de ansiedade pelo seu retorno e ao mesmo tempo de revolta, pois queria ter ido com ele pelo simples fato de não suportar mais morar naquele rancho. Nesse momento percebemos alguns “gatilhos” sendo ativados na mente de Pearl, com pensamentos bizarros que passa bem longe dos norteadores escrúpulos de consciência. Não vou contar detalhes para evitar spoilers, mas adianto que Pearl inicia um processo perigoso de descontrole emocional, que a leva a um caminho sem volta. Delitos morais podem ser explicados (mas nunca justificados) pela opressão psicológica que sofre de sua mãe, que a desencoraja de praticamente tudo, definindo-a como uma alma condenada à viver sem grandes propósitos pessoais.
Entretanto, a mãe reconhece que Pearl possui desvios de conduta, por isso desaprova os sonhos da filha, que passa a ter um comportamento cada vez mais agressivo. Nesse ínterim, Pearl conhece um jovem que trabalha no cinema da cidade (interpretado por David Corenswet), e logo cria um laço amigável com o rapaz, mas que se torna impróprio nas cenas seguintes, por razões que ele desconhece, mas que ingenuamente acaba por encorajar Pearl a seguir com seus propósitos. Daí por diante temos sequências chocantes (diálogo verborrágico e agressões físicas) que passa muito pelo comportamento errático de Pearl, surpreendida pela mãe, que descobre mentiras contadas pela filha. De reações impulsivas e inofensivas no início, a protagonista passa a ter surtos psicóticos, com atitudes descompensadas, alterações no tom e velocidade da voz, enxergando qualquer um como inimigo e crises que só vão catapultando a imagem singela criada nas primeiras tomadas.
Quem assistir poderá pensar, num primeiro momento, que a mãe subestimou o estado psicológico de Pearl, mas eu interpreto isso como uma falta de informação do que o puro neglicenciamento com a situação. Ruth estava com o universo povoado pela ininterrupta vigília ao marido inválido na cadeira de rodas, um diálogo expressa bem esse fardo, quando ela diz que queria fazer o papel de esposa e não o de “mãe” do marido, dadas as circunstâncias que lhe foram impostas. E também estamos falando de 1918, uma época em que a tecnologia e comunicação ainda encontrava barreiras homéricas para difusão da informação (só havia o rádio e a carta). Para piorar, no meio de todo esse turbilhão de inconsequências, Pearl decide participar de um teste para dançarina organizado pela igreja da cidade, mola propulsora para mais problemas, começando pela irredutível desaprovação da mãe, que expressa argumentos duros e sem o menor sinal de empatia com a filha.
Eu ainda não assisti ao filme “X – A Marca da Morte”, lançado também em 2022, meses antes de Pearl, e que passa no ano de 1979, já com a protagonista em idade avançada. O filme termina com uma cena que lembra bastante, talvez até seja uma homenagem, provavelmente ao personagem principal do filme “O Homem que Ri”, de 1928, ainda que muita gente possa pensar que seja uma “coringada”, alusão bem definida do supervilão da DC Comics, muito mais popular no universo cinematográfico. De qualquer forma, relevo essa escorregada, já que estamos falando de uma história ambientada em 1918, tempo em que nenhum dos personagens havia sido criado. Mas entendo e estou de acordo com essa “licença poética”.
O monólogo final em que Pearl se coloca hipoteticamente diante do marido, mas que na verdade discursa o que sente e os atos cometidos para a sua cunhada (Misty, interpretada pela Emma Jenkins-Purro), é de uma atuação marcante (sem interrupções), colocou à prova o resultado de uma mente dominada por uma força inexplicável, concatenando ações com justificativas plausíveis sob sua perspectiva, tudo para ser absolvida antes mesmo de ser descoberta. Cena impactante que foi se desenrolando igual a um novelo, com gradações que foram escurecendo, se distanciando aos poucos do senso de realidade, tudo sendo conduzindo meticulosamente a uma parede intransponível. Mas não para ela, é claro! O filme é um prato cheio para psicanalistas e psicólogos, pois a história se concentra na construção de personagens perturbados por questões existenciais (e também genéticos) que desafiava os conceitos sociais e a literatura médica, sob o escopo vigente da época.
O filme “Pearl” está disponível no serviço de streaming Prime Video e tem a classificação indicativa não recomendável para menores de 16 anos.
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Dados técnicos:
Nome original do filme: Pearl.
Direção: Ti West.
Roteiro: Ti West e Mia Goth.
Duração: 102 minutos (com abertura e créditos finais).
Procedência: Estados Unidos e Canadá.
Ano de lançamento: 2022.
Disponível: Prime Video.