quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A Substância (2024)


Por Daniel Gonçalves


Já vou avisando que a classificação indicativa para assistir esse filme é a partir dos 18 anos. Sendo assim, afirmo com todas as letras que o que eu acabei de assistir é perturbador, repulsivo e extremamente macabro. E não parecia nada disso quando começou, já que a história se passa com rápidos saltos temporais, construídos para contextualizar a posição da protagonista, Elizabeth Sparkle, interpretada pela atriz Demi Moore. Eu quebrei a cara (força de expressão!) nos primeiros 30 minutos, quando ocorreu a primeira tentativa de assistir, e o sono dos justos me impediu de prosseguir. A retomada ocorreu mais de três dias depois e quando me vi perdido para algumas situações de cena, optei por começar do zero, tudo em nome da boa experiência empática do presente, sem fracionar as emoções.

Elizabeth Sparkle tem 50 anos e sempre levou uma vida pra lá de especial, sendo considerada uma das mulheres mais lindas de seu tempo, alvo de todos os holofotes midiáticos possíveis. E esse tempo foi passando, juntamente com a evolução e involução dos seus atributos físicos, evidenciando a polêmica que gira em torno dos padrões de beleza. Claro que a vaidade (para muitos o orgulho) tem um peso difícil de mensurar e varia de uma pessoa para outra, mas o filme escancara uma indústria de entretenimento voltada unicamente para a audiência e o investimento dos anunciantes, e por outro lado, o cabo de guerra é puxado pela protagonista que se recusa a sair de cena pelos motivos alegados pela espremedora de laranjas. A indústria precisa de um rosto jovem e atraente na tela e a Elizabeth Sparkle não atende mais a esses requisitos, segundo seu patrão.

Os ventos mudam de direção quando Elizabeth descobre que será demitida de seu programa semanal, onde apresenta aulas de ginástica coletiva e, durante as gravações as câmeras são fechadas propositalmente em movimentos sensuais, que lembra bastante a linha pavimentada em décadas passadas. A necessidade de apelação para o caminho da extravagância é encabeçada pelo chefão do canal, um sessentão tarado por fantasias toscas, que quer porque quer alguém jovem exalando adrenalina para suas intenções comerciais. E a partir daí uma avalanche de incidentes sinistros acontecem, mas nenhum deles superam o desastre emocional causado em Elizabeth após seu desligamento forçado das telinhas. A questão do etarismo é tão cristalino e pujante como as estrelas do universo.

E a partir desse redemoinho psicodélico surge toda sorte de epifanias mirabolantes que promete manter a relevância física da pessoa. Geralmente desesperada por algo instantâneo que resolva todos os problemas, acaba cedendo a inebriante tentação da promessa (ou garantia) de um corpo perfeito para a continuidade de suas ambições. E vejam só como a tecnologia contribui substancialmente para que a pessoa recorra a essas tramoias controversas: um pendrive misterioso que traz uma forma velada de persuasão, acompanhada de um número de telefone, que em poucas palavras indica um endereço mais suspeito ainda, ou seja, o desespero leva à loucura desenfreada! E a protagonista, que se considera fora dos padrões aceitos por uma sociedade consumista, além do olhar julgador das pessoas, é facilmente conduzida para a grande armadilha feita pelo lobo!

A mesma pessoa se divide em duas formas, a matriz e uma versão jovem de si mesma, mais precisamente no frescor da idade adulta, com a clara intenção de fazer de sua vida um looping infinito naquele recorte de tempo. Regra basilar é que as duas não podem viver ao mesmo tempo, uma drena a energia da outra por 7 dias, uma espécie de retroalimentação, condição do equilíbrio estipulado pelo regulamento. A opinião de terceiros passa a ser a mola propulsora de suas motivações, a protagonista segue as regras impostas pela fórmula mágica somente nos primeiros dias, e a tentação de manter-se jovem grita em seu espírito a ponto dela estender sua permanência ininterrupta no mundo, em detrimento de efeitos colaterais que acometerão sua matriz. E claro, Elizabeth (agora respondendo pelo nome de Sue) rapidamente conquista o chefão do canal que a despediu na versão +50 de si mesma, sendo hipnotizado por essa figura que arrasa quarteirão por onde passa devido a sua exuberante beleza. E o vai de lá e de cá com agulhas e seringas é assustador, nem preciso dizer o risco absurdo de contaminação que o ambiente permitia, mas nada comparado às consequências alucinógenas aos envolvidos.

As coisas começam a sair do eixo justamente por esse descumprimento básico de manter o equilíbrio a cada 7 dias, ser jovem novamente leva Elizabeth (Sue) a ter experiências mundanas de forma intensa e também seguir cada vez mais em alta nos números do canal que atua. Passa a participar de outros programas televisivos e é escalada para apresentar o especial de final de ano da emissora, considerado o mais rentável da empresa para a qual trabalha. Nisso, os abusos na fórmula mágica a deixam viciada em frivolidades do dia a dia, está sempre acompanhada de homens em seu apartamento, é cortejada e paparicada por onde passa, enquanto que a matriz de sua forma está cada vez mais fragilizada física e emocionalmente, principalmente quando chega o momento de seu usufruto pelos 7 dias regulamentares. Prepare para ver bizarrices de diversas maneiras, aí o meu aplauso para a excelente caracterização dos efeitos visuais, ficaram horrorosamente sublimes!

Vou parando por aqui, tentei não contar spoiler de continuidade, mas algumas informações são necessárias para que esse texto tenha algum sentido. Confesso que virei a cara para algumas cenas bem impactantes e nojentas, mas me arrependi e voltei para ver com o semblante de quem encara algo repugnante com a mão prendendo a respiração do nariz. E claro, nem passou pela minha cabeça comer alguma coisa enquanto assistia. Fato é que o tempo passa para todos, mas entendo que todos tem o direito de fazer suas escolhas e reitero minha compreensão do direito universal de cada um tomar suas próprias decisões (estou me referindo especificamente ao caso da personagem central do filme). No entanto, é factível que busquemos os nossos ideais sem perder o controle sobre certas atitudes que podem ser irreversíveis, principalmente às quais envolve egoísmo, vaidade, ganância e outros podres que se disfarçam para nos enganar e sabotar nossas tentativas de ter uma vida honesta e fiel a princípios morais e éticos da boa convivência entre nossos pares ao longo de nossa existência.

O filme “A Substância” está disponível no serviço de streaming Mubi, sendo necessário uma assinatura paga para conferir esse ótimo longa estrelado pela Demi Moore.

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Dados técnicos:

Nome original do filme: The Substance.

Direção: Coralie Fargeat.

Roteiro: Coralie Fargeat.

Duração: 140 minutos (com abertura e créditos finais).

Procedência: EUA, França, Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.

Ano de lançamento: 2024.

Disponível: Mubi (serviço pago de streaming disponibilizado dentro da plataforma Prime Video).